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sexta-feira, 23 de janeiro de 2009
Deus é brasileiro
Essa crônica é baseada numa história real. Aconteceu com um tio meu, há mais de trinta anos. Entrei em Jarinu numa tarde de abril. Anoitecia bonito, como só vi até hoje em Minas e Goiás. Dirigia há horas, vindo de carro direto do Rio. Estava bem disposto. Ia ao centro jantar. Conhecer um restaurante novo que tinha me indicado um amigo. Funcionários públicos e empregados de lojas saiam do serviço pela rua. Grupos de jovens de uniforme migravam na paisagem, rumo ao centro educacional. As portas abertas da igreja acolhiam carolas, mendigos e pecadores. Eu trabalhava para uma conhecida empresa de caminhões. Meu ofício era cruzar do Rio a Bahia uma vez por mês, para supervisionar concessionárias e revendedoras. Olhava, preparava um relatório, assinava documentos e um abraço. O resto do tempo eu botava o pé na estrada. Todo santo mês. Adorava. Na estrada você não é ninguém. Ninguém te conhece. Melhor, você é quem você quiser. E eu queria ser muitas coisas naquela época. Uma das coisas que eu queria ser era um cara que se dava bem com as moças. Lembro-me com saudades de algumas delas, que conheci na estrada da vida. Esta é a história de uma. Não esperava nada de especial quando a conheci, mas a circunstância e os desdobramentos de nosso encontro marcaram nossas vidas para sempre. Ia atravessando a localidade de Jarinu decidindo meu itinerário. Ficaria por ali ou seguiria viagem? Era delicioso não saber. Três coisinhas lindas atravessaram na minha frente. Vestidinhos e olhares e pernas e risos. O olhar da da direita zuniu, tilintou. Bateu no cucuruco feito porradinha na passarela do álcool. Um anjo de vestido verdinho surrado e cabelão amarelado. Quem disse que Deus não é Brasileiro? Que Deus que nada. Isso ai é o anjo da perdição! Num segundo que durou meia hora, cruzou na minha frente, fingindo naturalidade. Cruzei junto com ela. Dei a volta com o possante e parei uns metros do outro lado. Querem carona? fui me insinuando de bobeira contando com a sorte improvável. Outro longo segundo de hesitação. No pulo seguinte entrincheiram-se no meu banco de trás. E olha que eu não sou disso. Não sou desse tipo. Não sei o que me deu alí. Acho que quis ser desse jeito e fui. A loirinha sentou na frente. A leitura das outras foi rápida. Num arroubo de boçalidade, agradeci pelo espelhinho. A pélvis dirigia o fusca enquanto eu assanhava. Vão prá onde? Para uma festa. Não quer ir com a gente? Aquilo ia bem pro meu lado. Deixei as moças na casa de uma e bóra eu fazer hora até dar a hora da festa. Achei o restaurante do meu amigo. Pedi um prato de baião de dois, conforme ele me orientara. De sobremesa, doce de leite. Fumei. Ví vitrine. Entrei em magazine. A noite caia fresca. Ventava um pouco. Sentia-me tranquilo e confiante. Saía -me bem, pensava. Quando nada se espera a coisa parece que flui mais. Passei na casinha delas mais tarde e bóra nós quatro no rumo da festa. Aniversário de 15 anos. Senti um pouco de vergonha, eu com trinta e sete numa festa de debutante. As três comigo não se davam com a menina. O sobrado grande, entulhado de homem feio e carente de mulher bonita. Mas tinha comida. A minha loirinha, feito prenha, alugou prá ela o cantinho do lado da mesa da bóia. Satisfeita, me chamou para dançar. Tudo ia bem. Tão bem que desconfiei. Quando a promessa é grande o santo desconfia. E quando é anjo caído, então? Então virou a maré. Parou um sujeito enorme trás de mim e da minha princesa. Suava, o homem , e cheirava enxofre. Ó, loira, estou ficando com ciúme. Subiu a escada e ficou olhando lá de cima. Quem é? perguntei . Não liga. É um bronco, devolveu dando de ombros. Simpático seu amigo, soltei, perdendo a chance de ficar calado. O anjo louro recostou a bochecha na fivela do meu suspensório e pronto: Esqueci da dor do mundo. Embalamos ao som do ABBA. Som bom é americano! pensei sem me dar conta que os caras do ABBA eram da Suécia. Outro amigo bateu no ombro dela e me acordou do devaneio. Era o pai da aniversariante. Ô carioca, você tem carro? Acabou a cerveja. Você vai buscar cerveja? Fui. Deixei a bichinha na porta, com aquela cara de tô te esperando. No primeiro posto de estrada carreguei o carro com a outra loira. Sete engradados da outra. Bóra de volta. Dirigi os vinte km de estrada de frente para a lua cheia que despontava no horizonte, com a cidade no fundo dando moldura. Olha isso! Deus é mesmo brasileiro. O que Ele ainda me reservará para esta noite? Pisei fundo, com o sussurro misterioso da lua cheia, que dizia para eu esperar e ver. Estacionando, reparei um vulto sob a sombra da fachada da casa. O carro era inconfundível. O polícia chegou junto, pediu meus documentos. Viu a cerveja quando abri o porta malas. A cara do cara passou da categoria "de poucos amigos" para "sem um único amigo". A coisa ali estava estranha, mas sempre dá para piorar. Alguém de dentro, correndo, veio gritando: Estão batendo! Estão arrebentando a moça! Entramos rápido eu e o policial e vimos em choque a cena no alto da escadaria: O sujeito, o mesmo de antes, socava a minha loirinha na parede. Puxava pelos cabelos e socava a cabeça dela, enquanto a moça girava e tentava revidar, chutando o ar. Os convidados, paralisados, assistiam. Corri em direção ao homem: Pára, pára. Nem vi de onde veio o safanão. Voei longe. A loira apanhava como um cão. Otário! Otário! O caboclo dava nela. Agora você vai ver quem é otário! Largou a coitada no chão, desceu pela escadaria, pelo hall e sumiu no escuro de Jarinu. Ficou tudo parado, em suspenso. A menina ainda ali no chão, meio viva e meio morta. E o tal policial? Fugiu, depois de te bater, de te dar uma coronhada, disseram-me depois. O que foi aquilo? Perguntei ao cara que me ajudou a levantar. Some daqui, carioca, que ele vai voltar e vai matar você. Vai matar você e vai matar a moça!
Continua...
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Crônica
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