Ganhei de presente do Mario Gil (foto acima) seu o novo CD, “Comunhão”
Tive o privilegio de trabalhar por dez anos com o cara, dando aulas de violão na escola suíça.
O Mario pertence a um grupo de seletos músicos brasileiros que se preocupam em divulgar e valorizar uma cultura brasileira cabocla, estilos em extinção da rica e mal conhecida diversidade da música brasileira. Apenas por esse fato, o esforço já seria digno de elogio. Só que tem que o cara é talentoso pacas. E tem muitas facetas.
O Mário Gil violonista declara abertamente sua paixão por Baden Powell
(“Queria ser como ele”). O Mario cancionista é mais difícil de rastrear. Eu vejo um pouco do Edu Lobo mais antigohttp://www.youtube.com/watch?v=_NXhdKbuprE
com seu estilo elegante de compor sobre temas brasileiros.
Seu forte são as levadas de violão, texturas tecidas com acordes abertos e afinações alternativas. Alguns de seus dedilhados e texturas lembram peças e estudos de Leo Brouwer
O polegar de “arqueiro zen”, o timbre bem construído pela mão direita. O Brasil desconhecido também se mostra em afinações inusitadas, de viola caipira
, de guitarra portuguesa
, e sabe-se lá de que mais.
Suas melodias em geral são pentatonicas, diatônicas, modais, e não são muito complicadas. A estrutura fraseológica abusa do estilo “pergunta-resposta”. Às vezes ousa um caminho intrincado, como em “Flor Ardente”, mas não é sua característica. A melodia é secundária em suas canções, a meu ver. Servem de moldura para o incrível violão por trás e para o arranjo bem cuidado.
Sua temática é o Brasil mítico de Guimarães Rosa; o Brasil simples de Dorival Caymmi. Celebra homens e mulheres humildes, mas de grande valor. Seu romantismo é quase uma defesa auto-imposta contra a cretinice e absurdo dos diversos Brasis reais.
Sua linguagem é a dos dialetos. Usa palavras perdidas na curva do tempo, dos vaqueiros, sinhazinhas, cunhazinhas. Mario inventa um Brasil que reinventa o português. “Bumba tamborzeiro, eá/Tantã atabaque, eá/Ê um dá eô”...As letras vão revelando um mundo interior do Mário que não aparece facilmente na convivência diária. Convivi anos com o Mário e posso afirmar que ele é um cara bem adaptado à vida pós-moderna, tecnológica, internetica. Mas adaptação não significa adesão.
Disco é dedicado à sua mãe. Senti inveja. Queria ter a vontade de dedicar alguma coisa à minha mãe...Ouça trechos de todas as música comentadas abaixo no link:
O CD “Comunhão”, Faixa por faixa:
1 – Dançapé – Difícil é superar a gravação da Monica Salmaso. O Mário caprichou no arranjo e criou uma antecipação rítmica no final da frase “Ê rum dá reô” que eu gostei. Ficamos tentando imaginar o que ele quer dizer nessa letra.
2 – De Flor em flor - Autobiográfica, é profunda e lírica. A sua dor colocada elegantemente, sem drama ou exageros. Demonstra grandeza ao superar os apegos emocionais e ao desejar um caminho iluminado ao antigo amor. Muito bonito.
3 – Olho de fogo – No vocal, um Renato Braz não muito inspirado. A Letra é de Paulo Cezar Pinheiro. A velha temática do “feitiço da mulher cabocla mitologizada”, como em “Anabela”, “Essa moça” e “Submerso”. “Desde então to preso nesse olhar” com “rallentando” e melodia diatônica lembra passagens de seu primeiro CD.
4 – Acalanto – Começa como canção de ninar, para se “Caymizar” na segunda parte. Sinto os novos filhinhos do Mário na parte de “ninar”. Desfilam os interiores de meninas do interior na outra parte. A melodia nos transporta para o meio do sertão de Minas Gerais. Singela e bela a melodia. Toninho Ferraguti arrasa. Teco Cardoso, dispensável.
5 – Mestre Capiba – Frevo com letra do Paulo Cezar Pinheiro. A voz do Mário percorre o desenho melódico com desenvoltura, e parece à vontade no estilo novo.
6 – Vaga Lume: Aqui se revela um Mário Gil menos cerebral, menos distante. Como o conheço um pouco, arriscaria apostar que essa canção é da sua última safra de composições. Tem algo novo aqui. Tem emoção, e bem viva. “Se eu seguisse a paixão que sinto agora”... “Se eu pudesse eu me atava a esse amor”. A melodia tem um quê de Dominguinhos. O “alter ego” é feminino. Isso foi corajoso. Dou seis meses para a Bethania gravar. Alguém mostre para ela! A voz da Luciana Alves emoldura a linda melodia. A melhor canção do disco.
7 – Caruana – Reparem no dedilhado, na levada ao violão. É um estudo para a mão direita. O violão de aço do Jardel dá o toque marcial. A melodia insinua um “pentatonismo modulante” (Meus Deus, o que significa isto? Baixou o Gil em mim !). O estribilho tem um toque renascentista.
8 – Comunhão - Lembro de estar sentado na varanda na base do acampamento militar na serra da canastra em São João Del Rey. Era 2001. “Ouve essa música que acabei de fazer”. Pegou o violão, reafinou de algum outro jeito e tocou. Estava fresquinha. Saindo do forno. Lembra disso, Mário? Acho que foi no ano em que a filha do Rodolfo enfiou a cabeça naquela pedra... Meu Deus, esse dedilhado! De novo o aço do Jardel Caetano, aqui mais contido. O universo de Guimarães Rosa. De - repente estamos no interior de um Brasil imemorial. Personagens como Zeca Boiadeiro, Jóca, Rosa bordadeira. Na segunda parte da canção (“Casco de cavalo batendo o pó etc.”), a tonalidade se estabiliza maior, e abre-se à frente uma paisagem do sertão, do norte de Minas Gerais, divisa com Bahia. . Essa canção é uma legítima herdeira do disco “Contos do Mar”. Detalhe: A letra não é do Paulo Cezar Pinheiro. É do próprio Mário.
9 – Imperador da Ralé – Sinto uma desconexão com o arranjo delicado, a melodia sofisticada, e o personagem da canção ,que parece tirado do filme “Tropa de elite”. Parece que o “Compadre Chico Bacharel” teria muita dificuldade em se reconhecer na canção que conta sua estória. Há “crescendos” interessantes, tão ignorados no universo da música popular (Mas isso é realmente música popular?). Não gostei do clarinete do Proveta. Já o último solo do Jardel por um momento parece captar a violência do personagem, mas então a música acaba.
10 – Pajé – Textura musical bem construída, novamente o Ferragutti criando a atmosfera. Os vocais me levaram direto para o clube da esquina e para a década de setenta. O diálogo flauta-clarinete aparece aqui com relevância. O timbre do violão 12 cordas é belíssimo. Como não tem letra, fico imaginando qual foi a colaboração do Paulo Cezar Pinheiro na peça.
11 – Minha terra meu lugar – O baixo tocado com arco me levou para o Irã, ou para uma cena do filme “Babel”. O Mário aqui revela seu desejo expresso de retornar à suas origens, à sua cidade natal, ao interior do Brasil, à inocência perdida. O Mário tem essa nostalgia sem forma, um pouco impossível, de retornar ao útero, ao princípio, como um cardume de salmões rio acima. O questionamento da modernidade, da cidade, a falta de sentido revela a sua esperança de se reconectar com esse algo misterioso que acontece espontaneamente às vezes num palco, num show. A idealização do interior, da vida no campo, se manifesta no estribilho: “Volto pra lá, vou pro meu sertão.” Mas é “lá” também que mora sua mãe, a “dedicanda” de seu disco.
12 – Despedida – Voltamos para o Clube da Esquina. O Mário canta essa pequena melodia sem repetição. Poderia ter terminado o CD na canção anterior.
O encarte, como uma mini-galeria de arte , traz algumas obras do artista Luiz d´Horta. O acabamento do CD é impecável, melhor que o anterior, "Contos do Mar".
Aprendi observando o Mário que quando nos postamos para tocar, entramos num outro espaço, e a qualidade da paisagem será criada na relação entre você e o instrumento. Na qualidade da sua concentração, da sua entrega. Não se trata de mostrar ou provar algo, mas de revelar lugares interiores, para quem ouve e para si mesmo. Quanto maior o mergulho, maior o vôo.
Parabéns, Mario. Belíssimo trabalho.
Para nós consumidores de cultura, eis um ótimo presente de natal. Noticias sobre shows de lançamento em 2008, acesse:
Abraços.
Nenhum comentário:
Postar um comentário